quinta-feira, fevereiro 13, 2020

Dias de Areia Nas Mãos


Escrevi o teu nome mais de 7 vezes. As vezes que foram necessárias para limpar o céu acima de mim. Desfocar o limite da tua sombra e racionalizar momentos. Sentidos. Emoções.

Perguntei o que achavas sobre o facto de nos termos encontrado. No momento preciso em que tudo à nossa volta gritava e se encolhia perante as evidências. Perguntei porque tinha o coração a sair. A querer ir embora. E porque se não perguntasse naquela altura, os dias continuavam a passar sem ter a resposta necessária para ancorar a Alma outra vez.

Num dia de sol apaziguador e cheio de flores em cima das árvores perguntei-te, uma vez mais, porque é que o sol se apaga, às vezes. E pedi-te para me explicares com essa tua ternura tão genuína, com essa genuinidade tão cheia de seres tu, porque é que naufragamos sempre na mesma ilha. Na parte terrena de nós próprios. Rodeados da água que nos acalma e sustenta. Que nos silencia e denuncia. E nos retira essa imensidão de querer ir mais além. 

Mais além.

Olhar para a rua e ver pessoas a caminhar. Vê-las sair das casas e ter a noção exacta daquilo que vão fazer. Partindo do principio de que faz parte de cada um de nós saber o que se vai fazer a seguir, claro. Sempre tive grande estima pelas pessoas que destroem para construir a seguir. Para construir novo. Relançar pedras facultando-lhes a possibilidade de serem algo novo. De fazerem parte de algo diferente. Mutável. 

Construir um castelo. Com as pedras do caminho, lá dizia Pessoa. Ele guardava-as. Dizia ele. Eu guardo-as e limo-lhes as arestas. Um castelo tem de ser diferente de tudo o resto. Assim, haja castelo.

Guardaste a maior parte de ti para dares mais tarde. Para oferecer a quem queres, mas mais tarde. Concordo, digo-te. É muito recomendável guardar sempre um bocadinho para o que vier. Para quem vier.

Dizes-me que tens frio. Que a tua pele está seca e rija. Que tens mesmo muito frio e que não consegues raciocinar. Dizes que o sol se apaga às vezes e que por isso a temperatura do teu corpo baixa. É nessa altura que naufragas e me fazes naufragar. E é precisamente nesse momento, que suspende todo o tempo, que fazes questão de te mostrares e dizeres quem és na verdade.  
O bocadinho que tens guardado nem se mexe. 

És mesmo tu que tenho guardado em mim ou o bocadinho para mais tarde?

O cume mais alto de todos os cumes. Onde pretendo subir um dia com as asas que pretendo adquirir. Um dia. Ter mel a correr nos braços. Nas veias dos braços. Um dia. Comer uma fruta qualquer. Num sítio qualquer. Abraçado a uma árvore, também ela qualquer. Um dia. Correr e pular e voar. Plantar girassóis e vê-los crescer. Um dia. Sentir o vento na cara. O sal a conservar o corpo. A deixá-lo estar. Um dia. Viajar até ao sol. Garantir que ele não se apaga. Sempre. Um dia.


Qualquer dia, mas um dia. 

Escrevendo o teu nome na areia. Mais de 7 vezes. Dizem que dá sorte. Que aproxima as almas. Que as faz suar de sentir falta. As emoções não costumam rimar, eu sei. Por isso escrevo o que te identifica. As palmas das mãos viradas para cima. Os grãos de areia cheios de letras. Mexendo-se e formando palavras. Reflectem o pensamento e juntam-se nas mãos, fazendo-as nascer. 

Sacudo as mãos e os grãos que ficam são os que fazem sentido. Os que o corpo agarrou através do suor. Esse bocadinho guardado de nós próprios que teima em contrariar tudo o resto. 

- " Porque é que naufragamos sempre na mesma ilha? "   
- " Estás com as mãos cheias de areia. Sacode lá isso, vá lá…" 

Um dia.

quarta-feira, março 21, 2007

Love Show


As mãos que separam os teus dedos dos meus….As coisas que fazes para pareceres mais alta e a vida que manténs sempre mais distante que os demais. Olhos líquidos, boca cheia de água. Pelo menos para mim.

Tudo lá dentro….Habituaste-te a manter tudo lá dentro…Aí dentro é mistura de paz, angústia, sofrimento e rebeldia. E não gostas disso. Não gostas do que significas para outros mas manténs-te linda e vulnerável. És Lua. Meteoros a cair em ti. Sempre vulnerável.

Love Show.

Aposto que te perguntam quando dormes. Aposto que os anjos te perguntam quando dormes de que é que és feita afinal. Tal como eu. A esfera de sentimentos que me enche a alma. Que me alimenta os ossos e a carne. Que me diz para falar baixinho. Como se não dissesse nada. Não é preciso dizer-te nada. Tu sentes e queres. Queres e sentes, não importa a ordem. Pedes também ao vento para te levar o que queres que seja entregue?

O intratável sentimento que tudo pode ser como queremos com um estalar de dedos. A verdade da vida a mostrar-se. Do amor a mostrar-se. Dos erros e das coisas que não sabemos. Não dói mas mói. Sei e quero e tenho para mim que vou ter e mostrar-te o que queres e não queres ver e sentir. Sei-o, podes ter a certeza. E nada continua como antes.

Nada, ouviste?

Love Show.

Deambulo e vou sempre dar ao mesmo. Todos os dias o mesmo. Penso e sempre o mesmo. A diferença agora é que quero pensar e servir de barco onde possas pousar esses teus pés de princesa com os lábios definidos. Com esses olhos líquidos e perfuradores. Mãos e dedos separados por água. Não muita mas alguma água. Como os teus lábios que eu quero e tenho manifestamente falta de visualizar.

Agora vou esperar. Esperar que o tempo seja ainda mais relativo do que o foi até agora. Que o tempo não tenha velocidade constante. Que a água que nos separe não seja estável no caminho a percorrer. Que os anjos se apressem. Que a vida tome proporções de sonho e de sobremesa no final do jantar.

E que o amor se mostre. No fim. E no começo de tudo.

quinta-feira, dezembro 16, 2004

A mulher que só casava um dia de cada vez


Death the Bride, Thomas Cooper Gotch

Estou aqui à tua espera. Como sempre. O que importa é que adoro sentir esta espera como algo que começa e acaba em mim.

Tenho a sensação incrível da clareza de sentimentos que me assalta e me transporta de mim para ti, de ti para mim. O teu cheiro a mar sempre foi o melhor antídoto. A melhor forma de te dares a mim.


Vais e vens como se fosse natural. Normal em ti. Sinto por vezes o vazio que sentia se te perdesse. Dizes-me para não me preocupar. Que não me vais fazer mal. Que nada em ti me vai fazer mal. Acredito nas Estrelas, na Lua, no espaço que me contém. Acredito na minha transpiração misturada com a tua. Com o teu sabor e cheiro a maresia. Não me importo de te perder. Importo-me de te ir perdendo.


O teu crime foi teres-me posto assim. Ávido de esperança. De chuva na minha boca.
A sentença é teres que me amar até ao fim. De olhares para mim como ser que é. E que só é porque não se imagina sendo sem ti.

- " Vais-te embora?
- Não. Quero ficar aqui. O mundo só é sonho ao pé de ti. Lá fora perco-me, tu sabes....
- Sim.
- Casas comigo? Só hoje...... Sim?
- Sim..."

É engraçado como dispões de mim. De mim e de ti em mim....Espanto-me com a tua capacidade de decidires aquilo que quero e não quero. Os meus neurónios como íman atraídos pelo magnetismo dos teus. Dás e tiras. Ofereces a alma e retiras-me a vida........

- " Não te vais embora, pois não??
- Tenho que ir. Já é tarde......Sabes que eu ficava, mas não posso....
- Sim.....
- ................................
- Vou sentir a tua falta hoje à noite.....
- ................................"

O facto de ter a presunção de ser o centro das tuas atenções, deixa-me infeliz ao ponto de me anular a mim mesmo. De ser cada vez mais eu próprio, com toda a tristeza que isso acarreta. Vivo para ti e por ti.


Porque é que os desejos e necessidades nunca se conjugam a cem por cento?
Porque é que as almas só encontram paz quando deixam o corpo e os seus vícios? A minha vida tem mais sentido contigo. Não com aquilo que mostras que és. A diferença fundamental entre nós. O que me faz sofrer e ter medo. Muito medo.


Há muito que não choro. Basta dizer isto para soltar a primeira lágrima. Sair de mim e vê-la cair. Ter pena de mim. Ao olhar-me. Ao começar a pensar que nunca vou conseguir aquilo que procuro e necessito. Que era só isso. Ter-te. Como sentimento daquilo que é a minha essência. Daquilo que sou. Só. Isso.


A praia onde costumávamos ir está deserta. Em pleno verão está deserta. É a sensação que tenho quando olho o mar e me lembro de ti. A espuma nas rochas dura. Dura, e faz de mim peixe miúdo a debater-se na areia, a suplicar água, sal e paz e sal e água. Paz.


Paz.


O mar está transparente. Vejo-lhe o fundo sentado na areia, onde contorço as mãos agarradas uma à outra. Como se fossem as tuas mãos e as pudesse tocar. Sentir. Salvar.
O Salva-vidas mergulha e traz consigo a constatação de mais um dia passado. Mais um dia passado sem ti.


Seja.......

quarta-feira, dezembro 15, 2004

Nós


National Geographic TM

O mar tem demasiado sal. Muito sal mesmo. Enxugo as lágrimas que vêm da maré alta. Do vaivém das marés. Reconheço cada grão de sal como parte de uma vida inacabada, e desvaneço-me em cada onda só para ter um sinal de ti. Um sinal de mim.

Nós.


Saio de mim, volto a sair. Sem ter entrado. Circulo perfeito sem retorno, sem paz, sem alma que afague o sal grosso que há em mim. Limito a acção da alma às pequenas coisas. A tudo o que tem verdadeiramente importância. O pormenor de uma vida. Síntese perfeita de emoções, de devaneios. Cristalizo momentos. Com o sal que faz parte de nós. Que nos diz baixinho que quer voltar ao mar. Consolo e tormento. Alma pequena demais para sentir tanto e tão pouco. O que se quiser. Ou o que se puder. Sentir.


Nada em mim é igual a ontem. Só o essencial é parecido. És parecida com o ontem da minha vida e no entanto és presente. Estás presente. Como a Lua que ilumina os meus sonhos, pela fresta da janela do meu quarto entreaberta. Nunca pedes para entrar. Pela janela. Pela minha vida e alma adentro. Entras e pronto. E dói quando raspas no sal que me preenche. Quando me chamas dentro de mim e tocas na saudade que me sustenta. É a vida que levo e que tenho. A vida com e sem ti. Não é muito. Nem pouco.


É.

segunda-feira, dezembro 13, 2004

Caminhado e caminhante




Nem sempre conseguimos sentir o que sentimos. Temos que chamar a razão de vez em quando. Para afundar o sentimento e recomeçar. Olhar para trás. Ficar lá um bocadinho, amar mais uma vez o que amámos, respirar fundo. Ainda estamos vivos.

O sentir das coisas é sempre diferente. O espaço que habitamos dita-nos as regras e envolve-nos. Somos as presas do costume. Dou por mim a construir desejos debaixo de uma chuva incessante. Ruidosa. Perfurante. Alicerce por alicerce. E continuo a sentir-me na mesma. Vulnerável e forte. Caminhado e caminhante. Profundamente esgotado com a beleza que mais ninguém parece notar. Divorcio-me da tristeza. Caso-me com a melancolia. O papel branco das nossas vidas, ainda por assinar. É constrangedor. Eu sei.

Quando durmo sonho acordado. Cada pessoa tem o seu sonho acordado. Retiro de mim a dor física dos momentos em que me perco em ti. Sangue. Dentro de ti. Lamento a vontade de te amar. Desculpo-me. A sombra persegue a alma de quem nunca amou. Cimenta-a. Se é que isso é possível. Nunca ter amado.

Não vale a pena. Não vale a pena não valer a pena. O caminho que nos cruza e separa e nos aproxima ao mesmo tempo. Leva-me a tempo de me salvar de mim. De me salvar de ti. Faz o favor de me amares. Como nunca amaste. A borboleta nunca pousa na mesma flor.

Nunca me dás aquilo que preciso. Dás-me sempre aquilo que é suposto dar-se. Não chega. Começo a estar farto desta exigência. Desta minha exigência. Da obesidade dos sentimentos. Da angústia de ter que ser. Só porque tem que ser. Alguém disse uma vez que se alguém não tiver nada de belo para se dizer, nada mais belo que o silêncio, então que se cale. O silêncio afaga-me as palavras. Prende-as. O silêncio cria em mim a calma para enfrentar a tempestade. A sensibilidade de cada um choca com a necessidade de se ser feliz. Volta-se sempre ao ponto de partida. De forma diferente. Mas volta-se. A infinitude da alma faz confusão. Mesmo não acreditando nas palavras, elas batem forte. Como se fosse a primeira vez que as ouvimos. E a última.

Decidi não perder mais tempo. Sinto. Digo. E acabou.

Faz-me falta o teu sorriso. Agora e sempre. Porque reflecte nos meus olhos. Ficam mais bonitos. Mais verdadeiros. Mais. Mais. Mais de ti para mim. Para mim. Mais.

Mais.

sábado, dezembro 11, 2004

Criador


Mulher ao Espelho - Pablo Picasso



Às vezes penso que tudo não passa de um acumular de esperanças. As coisas que um indivíduo faz para acalentar essas esperanças sai um pouco do domínio do destino puro e simples. A barca não permanece ancorada eternamente.

Quando revejo em mim aquilo que fui, fico confuso. Confuso e desejoso que a vida passe e me mostre a solução para conseguir o que ambiciono. Tenho tanto medo que me esvaio em lágrimas descontroladamente. Medos injustificáveis....Será que os há?
Não sei que tipo de sentimento me corrói. Não sei e tenho medo de o saber. Porque tudo à minha volta é propiciador de felicidade e eu não acredito. Pelo menos totalmente. Vai passar.....vai passar por mim e recuar. Recuar de mim para mim.

Lembro-me da ilha maravilha. É estranho estar aqui e lembrar-me do que me lembro. Do que podia ter sido. Do que podia ter melhorado e a paciência que podia ter tido. É estranho lembrar-me das pessoas que conheci. Das noites em que estava em mim e ao mesmo tempo fora. A viola. As estrelas como nunca tinha visto. A Lua. O mar. O som. O silêncio. Parece que foi hoje. Parece que foi tudo. E que não volta. Nada do que foi volta. Tornamo-nos sempre diferentes. E ausentes.

Catarina queria mostrar-me o paraíso na terra. Fazia questão em proporcionar-me uma vida que existia para além daquilo que pensava poder existir. É incrível como as coisas são repentinas. Como, num momento de rotina, nunca nos apercebemos das coisas que há para viver. O dia-a-dia chega-nos perfeitamente. A vida que temos limita-nos e separa-nos de nós mesmos. Água e azeite.
Densidade dos dias.

Chegámos num dia de Sol. Com aquelas nuvens a ameaçarem o que de bom poderia vir a passar-se. Nuvens controladas pelo vento quente daquelas paragens. Sempre em sintonia com o humor das pessoas. Com o amor que as pessoas têm para dar.

A aterragem foi indigesta. Pista de relva com buracos. Nada aconselhável para quem vem a chegar do ar. Da morada dos anjos. Depois foi o esplendor. O verde da vegetação e o céu azul a lutarem pela preferência dos visitantes. Por mim, fiquei com as duas. É impossível escolher entre duas belezas tão iguais. Semelhantes até na forma de cativarem o mais comum dos mortais. A beleza suscita-nos dúvidas, eu sei.......

Caminhava junto à praia. Gritava. Sim, gritava e ninguém me ouvia. A sensação de nos perdermos no espaço. Das palavras não terem qualquer importância. Porque, simplesmente, não há ninguém para as ouvir. Só nós mesmos. E o mar que as devolve, com o sal que nos alimenta o corpo, que nos dá vida.
" Não me apetece ir embora. Não me apetece partir e ver as coisas passarem por mim como se não tivessem importância. Tens sorte. Nem imaginas a sorte que tens"

"- Porque não ficas? Vais voltar para viveres a tua vida desgraçadamente!!!!! Porque não ficas?"

" Não tenho aquilo que tu tens de sobra. Livre arbítrio. Liberdade. Coragem. Tenho muitas imagens dentro de mim para desistir da vida que tenho. A memória dos seres vivos que me dilaceraram. Que destruíram o céu por cima de mim. Que me afagam a cabeça, ao mesmo tempo que me sugam a alma. Porq......."

" Chega. Só estás assim porque queres. Porque permaneces agarrado ao passado e vives com a angústia própria da presa, momentos antes de ser caçada."

" ........Porque é que as pessoas são assim? Vivem em sociedade mas isoladas dentro dela. Partilham sentimentos como se a outra pessoa fosse um bicho, um animal selvagem, incapaz de racionalizar, gerir, pensar."

" Sempre foi assim, David. Não me digas que nunca pensaste nisso? Muito poucas pessoas conseguem transpor a vida interior cá para fora."

A vida.

Semeaste a primeira de muitas sementes. Agarro a oportunidade e ela foge-me por entre os dedos. Presos à saudade do que me resta. Não faço tenções de me ir embora sem te ver. Sem te ouvir falar. Sem saber do que falas quando soluças calma e sofreguidão.
Vou para casa e agarro-me ao cobertor de lã pura que me deste quando me divorciei. Lembras-te? Fizemos uma festa de despedida de casado em minha casa. Trouxeste o vinho, a comida e o cobertor. Ainda hoje me agarro a ele. Não que me faça lembrar de ti. A comida estava óptima....

Sento-me no café ao pé da Praça com o nome de um acontecimento importante que se passou no ano de 1910. Os pássaros zangam-se porque cortaram os galhos das árvores. Porque desrespeitaram o seu direito em benefício da estética de uma cidade oca, vazia, podre. Voam em círculos. Manifestam-se ruidosamente e ninguém liga. Já estamos habituados a ouvir o sofrimento dos outros como algo que nos toca, sem nos tocar.

Não me ligas.
Hoje já é o 23º dia que não me ligas. Pareço um pássaro sem ninho. Sem poiso. Uma ave sem espaço para viver. Mais um comprimido para afagar a alma. Para a sustentar. A irritante torneira da cozinha sempre a pingar. Sempre à espera da próxima gota. Pode ser que me salve. Pode ser que me faça adormecer. Que os meus sonhos me levem e me tragam de volta a mim mesmo. Que me façam ser criador da minha existência.

Todo o criador tem uma justificação para a sua obra.



terça-feira, dezembro 07, 2004

Ergue


Mars TM National Geographic 2003



Ergue-se. Começa a cair e sai de mim em velocidade cruzeiro. A rapidez é tanta que não tenho consciência da falta que me faz ser feliz. Só o momento conta. O momento em que tudo à minha volta gira e roda e me separa das estrelas. Me aproxima delas.
Dor.
A chuva nas nossas caras numa noite fresca de Verão. Caem que nem sementes no teu umbigo. O teu umbigo. Que me habituei a beijar, a mordiscar. Sei que queres e não podes. Que as nossas preces se concretizaram noutra vida, não nesta. Sei que andas faminta de amor, carinho, chuva na tua cara. Para te sentires melhor que eu.. Melhor.

Tiras o cachecol e falas contigo ao mesmo tempo que te digo para seres tu a falar. Conheces cada gesto, cada gota do meu suor. Canso-me de te tentar vencer, de tentar sequer beliscar-te de amor e sentimento. Não falas. Não mexes. Nem sequer gritas o meu nome dentro do carro que compraste a crédito. E que puseste em meu nome. Só para poder dizer a toda a gente que o carro “é meu! Comprei-o ontem, não é lindo??”. Nunca mais me levanto. Nunca mais me levanto e dou um pontapé no gato. Nesse estúpido gato que me ofereceste para substituir as tuas ausências. Os gatos não têm amor para dar. São como tu. Quase. Tu não tens mesmo amor para dar.

Erguer.
Começar a erguer o sentido que deste à minha vida.

As nuvens em espiral no desembaraço dos teus braços emaranhados à minha volta. Como teias desejosas de um amor profícuo. Inerte. Opaco e belo. É como me sinto a dizer-te não. Só te disse duas vezes. Não. A primeira foi quando me perguntaste se tinha deixado de ter prazer contigo. Não. A segunda foi agora.

Quando ias ao café para te consolares com o tabaco que compravas com sofreguidão. Quando lá ias sentia-me preso por não precisares de mim. Ias e vinhas com a leveza própria das penas que embalam o amanhecer em que adormeço. Passava a noite a ver-te dormir. E só descansava quando acordavas e, ainda meio ensonada, dizias que era o teu mais que tudo. O teu anjo protector. Depois acordavas e gritavas enfurecida por estar acordado. Por te fazer dizer aquelas coisas. As odiosas e abomináveis coisas que desconhecias que existiam. Tinhas sonhos bonitos com certeza. Nunca descobri se sonhavas a cores. Pela forma como os teus lábios se redesenhavam enquanto dormias, como os teus braços se levantavam sentindo as minhas mãos, os meus dedos compridos. Por vezes também te acariciavas. Tentando imitar as mãos de quem sonhavas. De quem suspiravas. Começava a suar e crescias mais um pouco para mim. Eras enorme a dormir. E eu era o teu anjo. Pelo menos era o que dizias ainda ensonada. Pouco antes de ires comprar tabaco.
E eu erguia-me para ti. Para o relevo do teu corpo. E tentava dar sentido ao que restava de mim.



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