sábado, dezembro 11, 2004

Criador


Mulher ao Espelho - Pablo Picasso



Às vezes penso que tudo não passa de um acumular de esperanças. As coisas que um indivíduo faz para acalentar essas esperanças sai um pouco do domínio do destino puro e simples. A barca não permanece ancorada eternamente.

Quando revejo em mim aquilo que fui, fico confuso. Confuso e desejoso que a vida passe e me mostre a solução para conseguir o que ambiciono. Tenho tanto medo que me esvaio em lágrimas descontroladamente. Medos injustificáveis....Será que os há?
Não sei que tipo de sentimento me corrói. Não sei e tenho medo de o saber. Porque tudo à minha volta é propiciador de felicidade e eu não acredito. Pelo menos totalmente. Vai passar.....vai passar por mim e recuar. Recuar de mim para mim.

Lembro-me da ilha maravilha. É estranho estar aqui e lembrar-me do que me lembro. Do que podia ter sido. Do que podia ter melhorado e a paciência que podia ter tido. É estranho lembrar-me das pessoas que conheci. Das noites em que estava em mim e ao mesmo tempo fora. A viola. As estrelas como nunca tinha visto. A Lua. O mar. O som. O silêncio. Parece que foi hoje. Parece que foi tudo. E que não volta. Nada do que foi volta. Tornamo-nos sempre diferentes. E ausentes.

Catarina queria mostrar-me o paraíso na terra. Fazia questão em proporcionar-me uma vida que existia para além daquilo que pensava poder existir. É incrível como as coisas são repentinas. Como, num momento de rotina, nunca nos apercebemos das coisas que há para viver. O dia-a-dia chega-nos perfeitamente. A vida que temos limita-nos e separa-nos de nós mesmos. Água e azeite.
Densidade dos dias.

Chegámos num dia de Sol. Com aquelas nuvens a ameaçarem o que de bom poderia vir a passar-se. Nuvens controladas pelo vento quente daquelas paragens. Sempre em sintonia com o humor das pessoas. Com o amor que as pessoas têm para dar.

A aterragem foi indigesta. Pista de relva com buracos. Nada aconselhável para quem vem a chegar do ar. Da morada dos anjos. Depois foi o esplendor. O verde da vegetação e o céu azul a lutarem pela preferência dos visitantes. Por mim, fiquei com as duas. É impossível escolher entre duas belezas tão iguais. Semelhantes até na forma de cativarem o mais comum dos mortais. A beleza suscita-nos dúvidas, eu sei.......

Caminhava junto à praia. Gritava. Sim, gritava e ninguém me ouvia. A sensação de nos perdermos no espaço. Das palavras não terem qualquer importância. Porque, simplesmente, não há ninguém para as ouvir. Só nós mesmos. E o mar que as devolve, com o sal que nos alimenta o corpo, que nos dá vida.
" Não me apetece ir embora. Não me apetece partir e ver as coisas passarem por mim como se não tivessem importância. Tens sorte. Nem imaginas a sorte que tens"

"- Porque não ficas? Vais voltar para viveres a tua vida desgraçadamente!!!!! Porque não ficas?"

" Não tenho aquilo que tu tens de sobra. Livre arbítrio. Liberdade. Coragem. Tenho muitas imagens dentro de mim para desistir da vida que tenho. A memória dos seres vivos que me dilaceraram. Que destruíram o céu por cima de mim. Que me afagam a cabeça, ao mesmo tempo que me sugam a alma. Porq......."

" Chega. Só estás assim porque queres. Porque permaneces agarrado ao passado e vives com a angústia própria da presa, momentos antes de ser caçada."

" ........Porque é que as pessoas são assim? Vivem em sociedade mas isoladas dentro dela. Partilham sentimentos como se a outra pessoa fosse um bicho, um animal selvagem, incapaz de racionalizar, gerir, pensar."

" Sempre foi assim, David. Não me digas que nunca pensaste nisso? Muito poucas pessoas conseguem transpor a vida interior cá para fora."

A vida.

Semeaste a primeira de muitas sementes. Agarro a oportunidade e ela foge-me por entre os dedos. Presos à saudade do que me resta. Não faço tenções de me ir embora sem te ver. Sem te ouvir falar. Sem saber do que falas quando soluças calma e sofreguidão.
Vou para casa e agarro-me ao cobertor de lã pura que me deste quando me divorciei. Lembras-te? Fizemos uma festa de despedida de casado em minha casa. Trouxeste o vinho, a comida e o cobertor. Ainda hoje me agarro a ele. Não que me faça lembrar de ti. A comida estava óptima....

Sento-me no café ao pé da Praça com o nome de um acontecimento importante que se passou no ano de 1910. Os pássaros zangam-se porque cortaram os galhos das árvores. Porque desrespeitaram o seu direito em benefício da estética de uma cidade oca, vazia, podre. Voam em círculos. Manifestam-se ruidosamente e ninguém liga. Já estamos habituados a ouvir o sofrimento dos outros como algo que nos toca, sem nos tocar.

Não me ligas.
Hoje já é o 23º dia que não me ligas. Pareço um pássaro sem ninho. Sem poiso. Uma ave sem espaço para viver. Mais um comprimido para afagar a alma. Para a sustentar. A irritante torneira da cozinha sempre a pingar. Sempre à espera da próxima gota. Pode ser que me salve. Pode ser que me faça adormecer. Que os meus sonhos me levem e me tragam de volta a mim mesmo. Que me façam ser criador da minha existência.

Todo o criador tem uma justificação para a sua obra.



1 Comments:

At 1:12 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Já se passaram oito meses e morro de saudades das viagens, do mar, da ilha, das pessoas que ficaram para trás. É como se o lugar onde permaneço não fizesse mais sentido. O meu refúgio, o meu "cobertor de lã" são as memórias que guardo e que me garantem que em breve regressarei.Continua a escrever com a mesma paixão. jokas

 

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